AS DUAS FACES
RICHARD SIMONETTI
Famoso artista assumiu o compromisso de pintar grande quadro a óleo para a catedral de uma cidade italiana.
A tela teria por tema a vida de Jesus.
Durante meses, o pintor dedicou-se ao gratificante trabalho.
Ao final, faltavam duas personagens:
Jesus-menino e Judas Iscariotes.
Meticuloso, ele pôs-se a procurar os modelos ideais.
Em bairro de periferia viu um menino de sete anos, cujo rosto o impressionou vivamente.
Tinha expressão suave, fisionomia tranqüila, olhos brilhantes e expressivos. Era bem o menino Jesus que concebia.
Conversou com seus pais e conseguiu que o levassem ao ateliê.
Dia após dia o modelo infantil posou pacientemente, até que a figura de Jesus-menino foi retratada, com toda a pureza e inocência pretendidas.
O pintor suspirou, aliviado. Faltava apenas Judas.
•
Jamais poderia imaginar que teria dificuldades.
O tempo passou, anos se sucederam, sem que o modelo ideal fosse encontrado.
O artista viu homens que traziam estampada na face a vilania e a degradação. Mas nenhum deles possuía uma fisionomia que configurasse Judas como o imaginava: deprimente figura, um homem vencido pela ambição, atormentado pela vil traição.
Os padres reclamavam, ele próprio se sentia envelhecer e temia não terminar a pintura, em face das exigências de sua própria arte. O quadro inacabado ficou num canto do ateliê, por duas décadas.
Mas o pintor não desistira.
Obcecado pela procura, examinava atentamente os homens com quem travava contato, mas nenhum se aproximava do modelo idealizado.
Certa feita, bebericava um copo de vinho, numa taverna, quando pobre homem, esfarrapado e magro, apareceu na porta. Dando um passo à frente, rolou pelo chão.
Voz rouquenha, implorava:
- Vinho, vinho!
Compadecido, ao tentar levantá-lo, viu-lhe o pintor o rosto bem de perto e estremeceu de emoção.
Aquela fisionomia atormentada, viciosa, suja, desesperada, era o retrato fiel de Judas!
Ansioso, ajudou o mendigo a erguer-se e propôs-lhe:
- Venha comigo! Eu o ajudarei!
O infeliz o acompanhou.
Chegados ao ateliê, depois de ter satisfeito a fome e a sede do improvisado modelo, o pintor desvelou a tela, dispondo-se a iniciar o trabalho.
Entretanto, quando o mendigo contemplou a tela, deixou-se possuir por grande agitação, desandando em choro convulso.
O pintor ficou atônito.
- Meu filho, por que se aflige tanto? Em que posso ajudá-lo?
Ele não conseguia falar, dominado por insuperável tormento.
- Fale, meu filho! O que houve? Quero ajudá-lo!
O infeliz controlou-se e a chorar perguntou:
- Não se lembra de mim? Há muitos anos estive aqui. Fui eu! Fui eu quem posou para o seu menino Jesus!
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Este fascinante episódio, relatado por um escritor inglês, dramatiza uma situação que se repete, indefinidamente, no mundo:
A perda da inocência, pureza, e o comprometimento com vícios e paixões, marcando a transição da infância para a idade adulta.
É comum os pais de criminosos que cometeram atrocidades comentarem, em desespero:
- Não posso acreditar que tenha sido meu filho.
Era um menino tranqüilo e gentil, incapaz de uma maldade! Como pôde transformar-se num monstro?!
Observando o comportamento desajustado, as más tendências que se manifestam no indivíduo, na medida em que supera o estágio infantil, tem-se a impressão de que a sociedade corrompe as pessoas.
Essa era a idéia de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo do Iluminismo.
Ele proclamava que o homem é bom ao nascer, puro e sem mácula.
Nasce com a face de Jesus.
A sociedade lhe imprime o rosto de Judas.
É evidente que se assim fosse estaríamos diante de um fatalismo inconcebível, uma incoerência de Deus.
Colocar-nos num mundo onde fôssemos inexoravelmente induzidos ao mal.
A idéia de Rousseau tem outro problema.
Favorece o errôneo conceito de que a alma é criada no momento da concepção.
Seria, portanto, pura e imaculada, como um livro de páginas em branco, corrompida pela sociedade, que nela imprimiria todos os seus vícios e maldades.
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Sócrates (470-399 a.C.), que viveu mais de dois mil anos antes de Rousseau, tinha um conceito mais avançado.
"Admitindo a idéia da Reencarnação, Sócrates considerava que a criança não é um livro em branco. Guarda registros de vidas anteriores." O processo da educação seria não apenas fazer o Espírito entrar na posse de seu patrimônio de experiências pretéritas, mas também ajudá-lo a superar as tendências inferiores resultantes de seus desvios.
É exatamente esse o ponto de vista da Doutrina Espírita, a nos ensinar que a candura da criança, sua inocência e simplicidade, nada têm a ver com a natureza do Espírito que ali está.
Este, na verdade, permanece num estado de dormência e só começará a despertar para a vida física após os sete anos, completando-se o seu despertar na adolescência, quando entrará na posse plena de sua personalidade e tendências.
Sua aparência, sua graça, sua inocência têm por objetivo despertar em seus pais, naqueles que a cercam, sentimentos de proteção e carinho, fundamentais para que ela sobreviva, já que nessa fase o ser humano é totalmente dependente.
Com a idade adulta, o Espírito reencontra a si mesmo, suas qualidades e defeitos.
A maldade, o vício, a inconseqüência refletirão apenas aquilo que ele é, realmente, fruto de suas experiências passadas.
Por isso é que a pureza aparente pode ocultar o comprometimento com paixões e vícios.
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Há que se considerar, contudo, que a finalidade da existência na Terra é a renovação, a superação de tendências inferiores.
Encarnamos exatamente para evoluir.
As limitações impostas pelo corpo físico, que inibem nossas percepções, as dificuldades e dores da Terra atuam como lixas grossas que desbastam nossas imperfeições mais grosseiras.
Uma das revelações mais importantes da Doutrina Espírita está na questão 383, de "O Livro dos Espíritos", quando Kardec pergunta qual a utilidade da infância, e o mentor informa que na infância o Espírito é extremamente sensível às influências que recebe.
“A Reencarnação é toda ela um processo de evolução, em que somos estimulados à renovação pelas experiências humanas, envolvendo as dificuldades e problemas da Terra"
Muitas de suas tendências inferiores e fragilidades poderão perfeitamente ser superadas com a ajuda dos responsáveis por ela.
Naturalmente, nesse processo, é fundamental que haja o exemplo, que os pais estejam dispostos a viver o que ensinam à criança, cultivando um comportamento digno e honrado.
De nada adiantará, por exemplo, ensinarem ao filho que fumar é nocivo ou que não deve dizer palavrões, se eles próprios o fazem.
Artur Azevedo (1855-1908), escritor e teatrólogo brasileiro, narra um diálogo entre pai e filho.
O pai, informado de que o menino mentia muito na escola, dá-lhe uma lição de moral, explicando-lhe, com variados exemplos, que é preciso falar sempre a verdade. Nesse ínterim batem à porta, e o pai termina a conversa dizendo:
- Vá atender, meu filho. Se for alguém que me procure, diga-lhe que não estou.
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É óbvio que a possibilidade de renovação não cessa na idade adulta.
A Reencarnação é toda ela um processo de evolução, em que somos estimulados à renovação pelas experiências humanas, envolvendo as dificuldades e problemas da Terra.
A diferença é que, enquanto crianças, podíamos mudar a partir da influência dos adultos.
Na idade adulta passa a depender da nossa iniciativa.
Qual seria o caminho?
Jesus no-lo indica quando proclama (Lucas, 18:15-17):
Trouxeram-lhe, então, algumas crianças para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas, e os discípulos repreenderam os que as trouxeram.
Jesus, porém, disse:
- Deixai as crianças e não as impeçais de vir a mim. Porque delas é o Reino dos Céus. Em verdade vos digo: aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, de modo algum entrará nele.
O Mestre situa as crianças como paradigmas da inocência e da pureza necessárias para que atinjamos o Reino de Deus.
Inocência - a pureza da consciência.
Pureza - a inocência do coração.
Somos convocados, agora, pelo conhecimento espírita, a transformar a nossa face, empenhando-nos com tal ardor e dedicação, que um dia possamos repetir com o Apóstolo Paulo (Gálatas, 2:20):
(...) e já não sou eu quem vive, mas o Cristo que vive em mim.
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