Por ser o único ponto de desembarque do tráfico negreiro que restou preservado, o Cais do Valongo, já declarado patrimônio carioca e nacional, deve se tornar patrimônio mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Em setembro, uma comissão do órgão vistoriou o antigo atracadouro e a expectativa é de que em maio o Brasil saiba se são suficientes as condições apresentadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em um dossiê de 400 páginas. A decisão final será anunciada em junho de 2017.
A vista para um longo vale entre os morros da Conceição e do Livramento era o que aguardava os sobreviventes que desembarcaram no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, depois de uma viagem degradante entre a África e o Brasil, entre 1774 e 1843. Das 4 milhões de pessoas escravizadas do outro lado do Atlântico e que chegaram para o trabalho forçado na época da colônia, nas fazendas ou na contabilidade dos negócios, 1 milhão passaram pelo Valongo – o que torna o porto a principal porta de entrada de homens e mulheres escravizados nas Américas.
O Cais do Valongo foi desativado por leis que proibiam o tráfico transatlântico no século 19 e foi aterrado para receber a imperatriz Teresa Cristina, em 1843. Recentemente, durante obras de revitalização da região portuária, ele acabou redescoberto, com a ajuda de especialistas.
No local, foram encontrados milhares de vestígios da passagem de africanos de várias partes. Entre os objetos, búzios do indo-pacífico, utilizados à época como moedas, além de colares, cachimbos, brincos e braceletes. São mil caixas, com 1,5 milhão de peças, guardadas em um galpão e que só devem ser expostas ao público em 2018. A prefeitura fechou contrato com um laboratório de arqueologia e um termo com o Ministério Público Federal para cuidar do material.
O ex-secretário executivo de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e morador do bairro Giovanni Harvey, que acompanha desde o início a criação do sítio histórico do Cais do Valongo, afirmou que o local é parte de um “quebra-cabeça' da diáspora africana.
“Há uma visão romantizada que acha que a chegada ao Cais do Valongo era a chegada do pai, da mãe e dos filhos, mas não é isso. É a chegada de uma pessoa que foi apartada de sua vida, de sua família, de tudo. Há três, quatro séculos, um ser humano era colocado em um barco sem ter nenhuma noção de para onde estava indo”, disse. “O cais é uma referência material, dá concretude a essa chegada de africanos escravizados”, acrescentou Harvey, que já esteve na Casa dos Escravos, em Goré, no Senegal, na Costa Oeste da África, onde os escravizados eram embarcados.
Na avaliação do ex-secretário, que já foi consultor das Nações Unidas, o reconhecimento do Valongo permite refletir sobre o passado e pensar o futuro, assim como o Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana, inaugurado em setembro nos Estados Unidos.
Milton Guran também aposta no tombamento do cais por ser um marco da violência da escravidão e único. “Este é o único porto de desembarque que se preservou materialmente no mundo, não tem outro”, afirmou. Ele lembrou que já foram tombados pela Unesco os portos de embarque de Goré, no Senegal, o Castelo El Mina, em Gana, e da Ilha de Moçambique.
O antropólogo, que estudou o retorno de pessoas escravizadas ao Benin, também defende a criação de um “memorial de celebração da herança africana” sobre a contribuição de africanos e de seus descendentes ao Brasil. “No dossiê da candidatura explicamos que todo o bairro do cais tem uma unidade e importância histórica”, citando, como exemplo, em frente ao Valongo, o prédio das Docas Dom Pedro II, projetado pelo engenheiro negro André Rebouças.
Pequena África
A região do Cais do Valongo, centro do comércio escravagista, também guarda vestígios de casas nas quais pessoas negras recém-chegadas da África eram vendidas como objetos, como mostram as imagens dos artistas Jean Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas e Maria Grahan. Bem perto, está aberto à visitação o Cemitério dos Pretos Novos, onde eram depositados corpos de jovens e crianças, principalmente, que não sobreviviam até a chegada ao Brasil.
Na mesma região, chamada de Pequena África pelo artista negro Heitor dos Prazeres, por influência da ocupação de africanos e seus descendentes, nasceram as primeiras associações que promoviam cortejos de carnaval (ranchos), candomblés e casa de angus.
“Não é à toa que o Rio de Janeiro é um polo de produção e renovação cultural no Brasil e no mundo”, disse, em vídeo do Iphan, a professora Martha Abreu, da Universidade Federal Fluminense, uma das autoras do dossiê de candidatura do cais a patrimônio.
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